sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A LENDA DA ILHA DA PACOCA

A LENDA DA ILHA DA PACOCA

Demóstenes, no auge de sua juventude, sentiu ardor no peito. Não, não era doença braba, mas um não-sei-o-quê, um não-tem-lugar, uma apertação no corpo, uma friagem quente que nem ele, com seu sentir, podia explicar o que era. Tinha aparecido no arraial de N. Sra. da Conceição quando viu aquela mocinha, tão bonita como as girandas de brinquedos. Era a Sebastiana, filha mais nova do Velho Bruno, tecedor de matapi lá do Furo-Grande.

O doente de não-sabe-o-quê, filho único de navegadores dos rios e do mar, estava só no mundo desde a adolescência, quando o pai não respeitou a tradição de presentear os negrinhos-da-pororoca com a destilada cana de Abaeté, perecendo entre ondas e remansos do encontro de águas doces e salgadas.

Homem de habilidades, Demóstenes dominava a ciência de se conduzir pelas águas, salgadas ou doces, calmas ou revoltas, no claro ou no escuro, de qualquer forma. Se tivesse apenas uma enxó construía qualquer embarcação, dependendo da madeira e do tempo. A matemática dos mastros e dos cascos lhe pertencia. A mecânica dos astros, o cheiro e a direção dos ventos, e as marés, era tudo o que precisava para navegar em qualquer água. Cortava o pano com o cálculo da experiência , encerava-o com resina de plantas ou de peixes, organizando qualquer velame.

Não tinha paragem. Hoje aqui, amanhã outro porto.

Mas jurou ficar ponte pelo amor da linda Sebastiana.

Tanto cantou, tanto cercou, tanto falou e ouviu, que Sebastiana também sentiu ardor no peito , o não-sei-o-quê , a apertação, o não-tem-lugar, as friagens, ou seja, apaixonou-se pelo navegador Demóstenes.

Pediu a moça em casamento e levou, não só a benção de seus pais, mas uma terra para se quietar: um lindo paraíso de várzeas, igapós e terra-firme, chamada de Ilha da Pacoca porque lá moravam muitas pacas.

Demóstenes e Sebastiana fixaram residência e domicilio e se amavam mais e mais conforme o passar do tempo. Até que uma noite a esposa cai doente: febre, tremedeira, diarréia, vômitos e desmaios. Era necessário buscar auxílio na vila imediatamente. Mas a noite era de temporal e de águas agitadas.

O mestre navegante observou o tempo e viu que era praticamente impossível vencer as ondas, correntezas e remansos, com apenas uma montaria que possuíam na Ilha, pois, desde que casou, não mais possuía outra embarcação para não ser tentado a voltar a navegar como antes.

Mas era o tempo ou a morte de seu amor. Resolveu enfrentar a natureza. Mas quando buscou sua montaria, percebeu que o temporal foi mais esperto e levou a embarcação em suas brabezas.

O desespero tomou conta do corpo e da alma daquele caboclo. Não tendo alternativas, pegou sua amada mulher nos braços e jogou-se no rio para levá-la a nado até onde pudessem salvá-la. Entretanto, o rio o devolvia para a margem com fúria e força. Após várias tentativas, e vendo seu amor suspirando de morte, Demóstenes começou a gritar clamando pelos encantados da floresta e dos rios. Pedia clemência pela vida de sua paixão. Não obtendo resposta, correu para casa e pegou todos os panos que lá tinham e os estendeu sobre as árvores, amarrando-os pelas bordas e pontas, formando um velame. Agarrou o remo que sobrou da sua montaria e, na beira do rio, mergulhava-o na água com o movimento de quem rema.

Tentava, com o velame de seus panos e com as remadas de seus braços, transformar a Ilha da Pacoca em embarcação, navegando na noite de temporal para salvar sue esposa. Demóstenes gritava por todos e por tudo e, de repente, sentiu que a ilha se mexia e navegava. Alegre, foi abraçar sua esposa desfalecida quando teve o assombro de não mais sentir sua respiração e seu calor: Sebastiana não suportou e faleceu.

Num impulso indescritível, Demóstenes levantou o corpo de Sebastiana aos céus gritando com a voz de cem trovões quando aconteceu um encantamento: a Ilha da Pacoca se iluminou toda, com as luzes de centenas de faróis e luas; os panos feitos velas se inflaram, e a Ilha da Pacoca começou a navegar velozmente sobre as furiosas águas do temporal.


Assim, até hoje, quando se tem um temporal feio na região do Rio Maratauíra, nas proximidades de Abaetetuba, uma grande embarcação, toda iluminada, com velas e velas, surge singrando as águas do rio e lá se vê, em sua proa, um homem com uma mão no cordame e, em outro braço, um corpo de mulher. É a Ilha da Pacoca, encantada, com Demóstenes levando Sebastiana para tentar salvá-la.

Cuiabá, 08 de novembro de 2008



Clóvis Figueiredo Cardoso


quarta-feira, 20 de agosto de 2008

DECAMERON E O TRAPICHE DE ABAETETUBA

TIVE UMA FASE NA VIDA QUE MINHA COMPULSÃO DIRIGIU-SE PARA A LEITURA DAS OBRAS CLÁSSICAS DA LITERATURA.
MORANDO EM SÃO CARLOS-SP, APROVEITEI DA EXISTÊNCIA DE FARTO ACERVO EXISTENTE NAS DIVERSAS BIBLIOTECAS PÚBLICAS, TAIS COMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL, USP, FACULDADES PARTICULARES, AS DO MUNICÍPIO E A DA CÂMARA MUNICIPAL.
MERGULHEI NOS TEXTOS DE CAMÕES, VICTOR HUGO, DANTE ALIGHIERI, STHENDAL, TOLSTÓI, MARK TWAIN, SHAKESPEARE, MACHADO DE ASSIS, FLAUBERT, GÓGOL E POR AI VAI.
NESSA MALUCA E OBSTINADA VIAGEM PELO MUNDO DAS MELHORES OBRAS LITERÁRIAS, ENCONTREI UM IGUAL QUE ME AJUDOU MUITO.
O SECRETÁRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS, XAVIERZINHO, HAVIA, RECENTEMENTE, ADQUIRIDO ENORME QUANTIDADE DESSAS OBRAS PARA O JÁ GRANDE E IMPORTANTE ACERVO DA BIBLIOTECA DAQUELE PODER. ENTRETANTO NÃO ERA PERMITIDA A RETIRADA DOS LIVROS E FUI OBRIGADO A LÊ-LOS SOB AQUELE EDIFÍCIO QUE FOI PROJETADO POR EUCLIDES DA CUNHA PARA SER UM PRESÍDIO.
O SECRETÁRIO INDICOU A LEITURA DE DECAMERÃO, DO ITALIANO GIOVANNI BOCCACCIO, ESCRITA ENTRE OS ANOS DE 1348 E 1353.
SETE MOÇAS E TRÊS RAPAZES, FUGINDO DA PESTE NEGRA QUE ASSOLAVA FLORENÇA, REFUGIAM-SE FORA DA CIDADE, ONDE PASSAM O TEMPO SE DISTRAINDO CONTANDO CASOS AMOROSOS DURANTE DEZ DIAS SEGUIDOS, TOTALIZANDO 100 NOVELAS. DAÍ O NOME DA OBRA: “DECAMERON” = “DEZ DIAS” EM GREGO.
MEU ASSOMBRO AO LER E RELER ESSE LIVRO É QUE, ANTES DE CONHECÊ-LO, JÁ SABIA DA MAIORIA DOS CASOS ALI DESCRITOS!
COMO PODERIA TER CIÊNCIA DAS NOVELAS DESSE CLÁSSICO ANTES DE LÊ-LO?


MINHA MEMÓRIA REPORTOU AO TRAPICHE DE ABAETETUBA. AQUELE MESMINHO QUE FOI TRAGADO PELA COBRA-GRANDE QUE TEM O RABO ESCONDIDO BEM EMBAIXO DA CATEDRAL.
UMA DAS AVENTURAS MAIS PRAZEIROSAS QUE TINHA ERA PESCAR DE CIMA DO TRAPICHE OS MANDIIS, MANDUBÉS, BACÚS E OUTROS PEIXINHOS.
ENQUANTO ESPERAVA A “BATIDA” NO ANZOL ISCADO COM CHARQUE, IAM APORTANDO AS GELEIRAS, FUBICAS, CANOAS, BARCOS E OUTROS. OS EMBARCADIÇOS SE REUNIAM NAS BARRAQUINHAS DE CAFÉ OU EM VOLTA DE UM BELO LITRO DE CACHAÇA DE ABAETÉ. OS CASOS ERAM NARRADOS COMO ELES PRÓPRIOS TIVESSES PARTICIPADO DOS FATOS. MONSTROS, TRAIÇÕES, LENDAS, VISAGENS, DOENÇAS MULHERES, MÚSICAS, ETC. o)S CASOS MAIS DIVERTIDOS ERAM JUSTAMENTE OS DO BOCAGE – SACANAGEM PURA!
EU AGORA DEBRUÇADO SOBRE UMA MESA DA BIBLIOTECA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS, LIA OS CASOS QUE JÁ HAVIA ESCUTADO INÚMERAS VEZES, POR NARFRATIVAS DE CABOCLOS, MUITOS DOS QUAIS ANALFABETOS, NO TRAPICHE DO MUNICÍPIO DE ABAETETUBA QUE UM DIA A COBRA GRANDE ARRASTOU PARA SEU NINHO.