segunda-feira, 9 de julho de 2007

OS SEGREDOS DE ABAETÉ


Com seu inventário de nomes, lugares, palavras, Celso de Alencar estabelece seu mundo poético. Abaeté não é uma lagoa escura, como diz Caymmi, mas o reino onde se encontram os que sonham. "Abaeté fascina e cativa porque entre o chão e as nuvens estão os espíritos". Ë o reino do imponderável, em que a imaginação do poeta flutua, devolvendo as impressões, acumuladas durante os anos da existência. Ë o vago cemitério marinho que sutilmente aflora "Grande mer de delires douée/peau de panthère et chlamy-de trouée/ de mille et mille idoles du soleil/ hydre absolue/ ivre de ta chair bleue,/ qui te remords/ l’étincelante queue/ dans un tumulte au silence pareil." — em que nos arrebata o genial Paul Valéry.

O fabulário funda-se no inconsciente, criando mitos sobre personagens e lugares, provavelmente reais. Assim os reis de Abaeté, quer sejam reis, quer seja Abaeté, o referencial se liga à realidade. Ë um mundo que Celso criou na sua fantasia e que convive com outras alusões extraídas do real; lugares como: — a loja do Matias, o bar do João Marques, a vala da rua Tucumanduba, Breves e Santarém; cenas da vida quotidiana: - Olga, a filha mais nova do Coletor, padece pelo amor de Justino; Apoio esbravejando com a calça mijada; Esmeralda, Jovina e Nelma; Torquato noticiará os 17 anos de Clotilde; rameira-mãe do Paturi; o riso do Mariano.

Com os mitos, nomes, lugares e alusões extraídas do subconsciente e da realidade constrói o mistério, não se sabendo o que trata de verdade e o que de fantasia, como "Caixas com garrafas de uísques/, vinhos, licores/ os mais finos foram/ trazidas./ O Santa Margarida/ atracou no trapiche do Mercado de Peixe”. Outro: "se estivesse lá/ terias apreciado os perfumes e as sedas/ de Paramaribo e Caiena", e ainda "Talvez não saibas/ que os barcos não colidiram / e que os netos de Mestre Ambrósio/ malgrado o forte vento e a forte chuva/ descansam no cais”.
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O enunciado é bíblico, tom cerimonioso de sermão. É a palavra do pregador, premonitória das possíveis incertezas na vida e as quebras do procedimento, acarretando a perda da recompensa.

"Trinta rios em quarenta e cinco noites."

Todo o mistério, o medo, a incerteza, carregando o castigo ou a recompensa. A expectativa da chegada. "Nos porões trouxeram carne/ de tingas e açus". "Na beirada do porto e do canal/ os moleques e os urubus/ alinharam-se e espreitaram a / descarga".

"Aqui nada é/ puro./ O confessionário, o coreto/ as fïlhas-de--maria,/ nem a batina do/ padre./ Os segredos de/ Abaete/ são se­gredos teus também."

Tom bíblico, mas não profético. A exposição grandiosa dos acontecimentos e suas conseqüências na vida das pessoas e na alma do poeta. É como diz Whitman: "Great are the Miths - I too delight in them,/ Great the risen and fallen nations, and their poets, women,/ sages, inventors, rules, warriors, and priests."

Diz o poeta: "Eu te digo/ a barreira de pedra/ não vencerá as águas/ grandes./ contra o tempo não há/ luta./ contra o tempo nenhuma arma é/ capaz." Diz ainda o poeta: — "Tu que foste/ escrava do rio, da tina,/ do assoalho e das/ paredes/ eu te pergunto: onde está a alegria/ que tinhas na casa de teus/ pais? "

Depois a messe, a criação e abundância, como a oferecer e a negar o prêmio do homem. "Acaso tens o pavão/ as marrecas, o matamatá no teu/ quintal? Onde está a fertilidade? / o arroz/ o milho/ o feijão." Ë o manjar dos deuses, a natureza concedendo ao homem a fruição do mundo, mas o próprio homem controlando, negando e sonegando. Por isso: "mostraremos as esquinas/ as ruas sem iluminação/ as ameixeiras, os açaizeiros/ os talhos vazios./ Não negaremos a fome/ a pobreza/ o rastro de Jeremias/ a morte de nossos cães."/ O bem e o mal serão expostos, para o julgamento. "Não sufocaremos nossos/ fantasmas". A grande realidade do mundo: "A cidade existe! / É cinza/ como o inverno e as chuvas."

Celso já publicou outros livros: Tentações; Salve Salve; Arco Vermelho. Levantou alguns prêmios no concurso de poesia falada promovido pela Revista Escrita, onde pode nos privilegiar com excelentes interpretações entre as quais destaco: - O ANJO "A argila fez-te belo./ - Ó pequeno anjo barroco./ Teu corpo fino como/ escumilha/ realça-te como obra de arte./ Canta a vida/ ó nobre divindade./ Esparrama no espaço/ a beleza esmerada/ contida no teu corpo./ Mostra a tua força inilidível / e conquista/ (com as armas que ostentas)/ o mundo."

Celso de Alencar é um poeta de grande inspiração, uma poesia que se pode classificar como "work in progress". A metáfora fácil em contínuo no texto, como espetáculo, explode em "fireworks", música de Handel para os Reais Fogos de Artifício, na terra fascinante dos segredos do reino de Abaeté.

J.B. Sayeg]
(Prefácio ao livro de poesias "OS REIS DE ABAETÉ" / Celso Alencar-1ª ed. - São Paulo:João Scortecci Editor, 1987)

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