quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O TEMPO DE UMA ABAETÉ

O TEMPO DE UMA ABAETÉ

A avó Maria segurava sua mão e caminhavam para o sítio na “Boca do Jarumã”, por onde passava o antigo ramal de Beja, numa distância de mais ou menos cinco quilômetros.
Era uma aventura aquela caminhada. Tanto pela lonjura quanto pela descoberta que no caminho a avó fazia questão de iniciá-lo.
A velha senhora, feições típicas de cabocla ribeirinha, carregava um ‘aturá’, grande cesto tecido de cipós, no qual passava uma espécie de cinta que ia presa em sua testa. Utensílio indígena com toda certeza.
Uma parada e apanhavam camapús, noutra, tucumãs e inajás, que pendiam sob armadilhas de espinhos.
Após o “Campo da Aviação”, antes do “Laranjal”, ficava um sororocal, onde pombos-do-mato arrulhavam em grande algazarra.
Sempre tinha a vez da paradinha para acender um cachimbo de cabeça de barro, após fatiar-se o “tabaco de mole” e amassá-lo nas mãos. Apesar da avó fumar o tabaco de mole, que era comprido como uma vara e vinha enrolado numa embira, no aturá ia o tabaco “Leão” que era o do gosto do avô. Na “Bera” tinha também o tabaco “Papão” que, tal qual o Leão, já vinha cortado, desfiado e empacotado. A paixão pelos times do Paissandu ou do Remo é que definiam a diferença de marcas e o gosto do fumante...
Às vezes cortavam caminho pela mata, passando pela tapera do Manduca, lanterneiro fazedor de lamparina a partir de lata de leite ninho, e por um afamado “terreiro” onde se cultuava Mãe Mariana, a Rainha da Turquia que se encantou nas matas da Amazônia.
Mas o que impressionava o menino eram os ensinamentos que recebia. As folhas e ramas de murta braba eram reconhecidas e apanhadas calmamente com um ritual religioso. A identificação do pé de verônica e a forma de se retirar suas partes sem matar a planta que junto com outras ia compor uma milagrosa garrafada para apertar vaginas e ajudar as raparigas e moças de família a resolverem diversos problemas sexuais, afetivos e financeiros. Além dessas, muitas e outras plantas da flora amazônica revelavam suas mágicas para o garoto.
Para se chegar no sítio, antes se passava pela floresta de ingazeiros, castanheira, andirobeira, bacuri-pari e açu, pepino do mato, pé de ginja, cacau, cacaui, açaí, bacaba, e uma bela casa-de-farinha com seus pilões, pás, remos, tipitis e o gigante forno de cobre para torrar a farinha d’água.
O menino corria para o avô e o abraçava. O avô,cego, segurando em uma mão uma vara e noutra a pequena mão, contava o que mais gostava de ouvir: a história da Rainha Encantada Maria de Portugal que vivia no olho d’água perto do Tijuquaquara e que explodia nas noites de lua cheia à qualquer aproximação humana.
A noite todos os sons e todos os encantamentos passavam na ilharga daquela casa abençoada. Mapinguari, Cobra-Grande, Negrinho da Pororoca, Labisonho, Padre-Sem-Cabeça e todos os entes do tempo.
Ao amanhecer o menino segurava a mão do avô cego que seguia pela mata, mas que a conhecia com a alma. Banhavam-se nas águas do igarapé ao lado de currais de mandioca braba que fermentavam tucupi em suas entranhas. Acarás passeavam tranqüilos sobre as águas.
Esse tempo anda vagando pela lembrança de um homem adulto, jogado no mundo que não lhe pertence, em qualquer metrópole do mundo.
O tempo pertence ao avô que doou sua carne e seu espírito para germinar um pé de andiroba na ilharga de um igarapé.
O tempo pertence à avó que encantou-se Matinta Perera e que espera seu neto trazer-lhe um bom tabaco de mole.

Cuiabá, 29 de outubro de 2009

Clóvis Figueiredo Cardoso